domingo, 1 de maio de 2011

Velocidade, Fragilidade e Informação

Vi o post da minha amiga Lou-Ann Kleppa, meninamalouca: Sobre a fragilidade, e lembrei de várias coisas e resolvi juntar algumas delas aqui.


Quando eu era criança minha mãe falava "SÓ atravessa depois de olhar pros 2 lados!".
Perguntei um dia, pro meu pai, "Pra que serve essas listras brancas no chão?"; respondeu, "É faixa de pedestre, pras pessoas atravessarem. Os carros têm que parar, mas é melhor você não confiar e só atravessar quando não tiver carro perto!"


"ESPERA, olha o carro!"
"Vai, CORRE!"

De maneira geral, com relação ao trânsito, aprendemos a nos defender, não aprendemos a proteger outras pessoas.
Existe um processo de naturalização do medo. É natural o pedestre ter que ter medo do carro, ter que correr para atravessar a rua, mesmo estando na faixa de pedestre, mesmo estando o semáforo verde pra ele(a) quando começou a atravessar...
Quanto estress!! Pedestre tem que correr, não pode só andar!

Quando fui "tirar" minha carteira de motorista percebi que no processo de aprendizado eu aprendi a operar uma máquina - pisar no pedal da  embreagem, controlar o pedal do acelerador, frear o carro, girar a direção, engatar as marchas.
Aprendi a operar a máquina, mas não aprendi a dirigir - operar a máquina em conjunto com outras máquinas e principalmente, com pessoas ao meu redor.

Ninguém na auto escola me falou diretamente que eu deveria atentar para os pedestres e ciclistas.
O Estado, através do Ciretran me disse indiretamente que eu não precisava me preocupar com os pedestres e ciclistas, já que na prova o foco era totalmente outro - decorar alguma placas foi a exigência principal para ser aprovado na prova teórica. O foco não era nem de perto me ensinar a conviver harmonicamente no trânsito com outras pessoas, respeitando os demais.
Na prova prática eu não podia passar de 20km/h, dirigi num lugar onde não havia outros veículos ou pessoas e a exigência era conseguir sair com o carro, andar duas quadras, fazer uma conversão para esquerda, parar o carro numa subida e sair sem deixar o carro morrer, fazer uma conversão para a esquerda, andar mais uma quadra, fazer mais uma conversão para esquerda, andar mais uma quadra e parar o carro. Pronto, avaliado em uma prova de 5 minutos, já estava habilitado para dirigir em qualquer cidade do Brasil, tendo ela algumas centenas de habitantes ou milhões...

Levei muitos anos para me dar conta que eu fui induzido a dirigir na máxima velocidade possível que a via permite. Eu dirigia na maior velocidade que eu conseguia sem bater em outros carros ou "sair" nas curvas.
É claro que dirigindo assim que não daria tempo de parar na faixa de pedestres - mesmo que eu visse a faixa e o pedestre - porque teria que ser uma freada brusca e provavelmente o veículo atrás de mim, correndo tanto quanto eu, acabaria batendo na traseira do meu veículo...
Teria sido muito bom se na auto escola (ou mesmo na escola) alguém tivesse me dito que dirigindo em velocidades altas qualquer imprevisto (criança repentinamente atravessando a rua, p.ex.) ou falha de outra pessoa faria com que eu não tivesse tempo de reagir.

Percebo também muita gente, mas muita gente mesmo, principalmente de secretarias de trânsito e transporte, dizendo "no Brasil não dá...", "brasileiro não respeita ninguém", "brasileiro não tem jeito...".
Eu já tenho um sentimento que MUITO brasileiro tem orgulho em respeitar e tem vergonha de ser taxado de folgado, de ser "Gérson".

E eu sinto também que falta informação!
O processo de habilitação de motoristas criou uma legião de brasileiros que sabem apenas operar máquinas, sem considerar seus efeitos, que em muitos casos, não têm noção que seus veículos, mal operados, são como armas, que ferem e matam.
As escolas, em geral, não ensinam cidadania. Muita gente sabe onde é o Procon, para se defender como  consumidor, como pagador, mas não sabe onde deve ir para exigir seus direitos de cidadão.
Falta informação do porque das coisas no trânsito. .
Perto de casa tem uma rodovia, limite de velocidade 80km/h. Num certo trecho o limite abaixa pra 60km/h. Um amigo me disse "Há, só pra pegar as pessoas desprevenidas e o radar multar. Porque tem que diminuir a velocidade se é uma reta?". Comentei que naquele trecho existe um trevo, com entradas e saídas de veículos, com mais conflitos que no trecho de 80km/h. Expliquei que provavelmente esse era o motivo da redução da velocidade. Ele concordou e disse, "Nunca tinha pensado nisso".
É um exemplo bem particular, mas usei para mostrar que falta informação pra gente saber ser cidadão no trânsito.
"No Brasil não dá..."; quem sabe se explicar antes de cobrar...

Fonte: Rosén, Sander, 2009
O gráfico acima é resultado de um estudo sobre acidentes envolvendo pedestres que foram atingidos por automóveis (para simplificar vou discutir apenas a linha contínua do gráfico). Mostra a probabilidade de óbito (fatality risk) em função da velocidade do impacto (impact speed).
Nesse gráfico, acima de 40km/h, a probabilidade de óbito dá um "salto".
Por exemplo, entre 0 e 40 km/h a probabilidade de óbito aumenta de 0 para pouco menos de 4%.
Entre 40 e 80 km/h (a mesma variação de 40km/h) a probabilidade de óbito pula de menos de 4% para quase 60% !!
A partir do momento que eu passei a saber que existia uma velocidade onde acima dela o risco de óbito era muito maior ficou muito mais natural para mim ver um placa de 40km/h e entender que dirigir acima daquela velocidade poderia causar um grande risco à vida de outras pessoas.

Fonte: European Comission, 1999
Campos de visão de motoristas a 50km/h e 30km/h:
À 50 km/h, o campo de visão do motorista fica mais estreito (região em amarelo) o motorista se concentra naquilo que está acontecendo à sua frente. Ciclistas ou pedestres na lateral da via, que estejam a até 15 metros de distância ficam "invisíveis" para esse motorista. A distância necessária para parar (stop) o carro, nessa velocidade, é de 28 metros.
À 30km/h, o campo de visão é mais largo. O motorista consegue enxergar um eventual ciclista que esteja à 15 metros de distância e tem tempo de reagir, já que, nessa velocidade, a distância necessária para parar o carro é de 13,5 metros.

Será que tendo consciência, de que quanto mais rápido mais estreito é o campo de visão, algumas pessoas passariam a dirigir mais devagar? Talvez?
Se uma pessoa ler isso e passar a ter mais cuidado porque passou a ter consciência desse fato eu já acho que esse texto valeu o tempo que levei para fazê-lo.

Mais uma das coisa que sempre lembro. Projetos de avenidas de 3 faixas, largas, "retões" onde o próximo cruzamento está a 400 metros de distância são um incentivo à velocidade. Não dá pra dizer que a culpa é toda do motorista. Quem projeta tem que ter essa consciência e responsabilidade. A técnica está aí para ser usada em prol da vida. Moderação de tráfego (traffic calming) existe, é bom e eu gosto. E moderação de tráfego não é só lombada (assunto pra outro texto).

Tudo isso que eu escrevi não significa que eu ache que não existam pessoas que queiram levar vantagem, que não existam pessoas que  mesmo tendo conhecimento não se importam com o coletivo, nem que não existam dezenas de outros motivos para os problemas de trânsito. Eu apenas acredito e defendo que não podemos interpretar o que acontece no Brasil apenas como desvio de caráter, ou traço cultural irremediável. A vida não é igual filme de ação de hollywood, ou é mocinho ou é bandido, entre o 8 e o 80 tem muita coisa, muitas nuâncias, cercada de variáveis. Por isso defendo que a informação deve ser distribuída. Usando as ferramentas em prol da vida, Yes, We Can.


European Comission. Cycling: the way ahead for towns and cities. Belgium, 1999.
Rosén, Erik; Sander, Ulrich. Pedestrian fatality risk as a function of car impact speed. Preprint of article published in Accident Analysis and Prevention,  v.41, p. 536–542, 2009.

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